Viagens e Aventuras

Relato da Travessia da Serra Fina

Começando o texto com um clichê, a Serra Fina é uma das travessias mais duras do país. Geralmente é assim que ela é descrita por todos os aventureiros que dedicaram alguns dias à imponente serra que marca a divisa dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

A serra, que possui um dos maiores desníveis topográficos do país (cerca de 2.000m), faz parte da Serra da Mantiqueira, e fica próxima ao Parque Nacional de Itatiaia. Aparentemente, o conjunto de montanhas da Serra Fina era praticamente desconhecido até meados dos anos 50, quando houve a primeira expedição à Pedra da Mina. Ainda assim, a travessia como conhecemos hoje, até o final dos anos 90 era realizada por poucos e experientes montanhistas. A medição da Pedra da Mina, quarta montanha mais alta do Brasil, foi realizada somente no ano 2000.

Pedra da Mina na travessia da Serra fina

Pedra da Mina

Preparativos para a travessia

Apesar de realmente ser uma travessia difícil, com forte exigência física e técnica, o número de pessoas por ali pode ser impressionantemente grande. Principalmente nos feriados do inverno. Para uma ideia geral, no feriado de Corpus Christi de 2011, a estimativa é de que havia cerca de 250 pessoas tentando realizar a travessia.

Pensando nisso, junto com grandes amigos (Adriano e Tinho), decidimos começar a travessia um dia antes do feriado. Essa foi uma das melhores escolhas em relação à travessia e recomendo. O espaço para camping durante a travessia é bastante reduzido. Além disso, existem trechos que com um número elevado de pessoas transitando podem se tornar bastante complicados.

Definido o dia da viagem, é importante decidir como fazer a travessia. Fazer de forma autônoma ou contratar um guia? É preciso saber que a navegação na Serra Fina é bastante complicada. Em diversos trechos, o capim de anta pode chegar até 2 metros de altura, além de ser bastante fechado. Mais preocupante, existem diversas bifurcações, principalmente por conta dos montanhistas perdidos que vão abrindo novos caminhos. O terreno é bem difícil, com subidas muito íngremes, muitos trechos de escalaminhada.

Descida que exige atenção durante a travessia da Serra Fina

Descida que exige atenção durante a travessia da Serra Fina

Por outro lado, é uma trilha bem clássica e, hoje em dia, é muito fácil encontrar bons descritivos e tracklogs de GPS na internet. Para quem já é mais experiente, pode ser um interessante desafio fazer de forma autônoma. Agora, fazer sozinho, só para quem, além de muito experiente, tenha total noção dos riscos envolvidos e seja capaz de lidar com eles. Para os menos experientes e menos avessos ao risco, vale muito a pena contratar um guia (com boas indicações, existem vários bons guias disponíveis em Passa Quatro-MG). Diversas agências também montam pacotes, com guias especializados, para fazer a travessia, geralmente nos feriados prolongados.

O próximo passo é montar a estrutura para a travessia. Como já dito, existem poucos pontos de água ao longo da travessia. Por essa razão, é fundamental levar uma boa quantidade de água, por volta de 4-5 litros por pessoa, o que aumenta muito o peso da mochila.

Também vale lembrar que o frio pode ser bem intenso, principalmente nos cumes à noite. Equipamento adequado é fundamental (jaquetas impermeáveis, um bom saco de dormir, botas resistentes e barraca resistente – venta muito nos cumes). No verão, o clima é bastante chuvoso e há grande incidência de raios, portanto é melhor evitar.

As escalaminhadas podem ser técnicas, mas não exigem equipamentos de escalada. Mas é recomendável levar corda, ao menos para segurança. O clima pode ser bem instável na região. Com neblina forte e persistente pode ser uma boa escolha adiar a travessia. O primeiro dia é até possível de ser feito com chuva e pouca visibilidade, mas a partir do segundo dia essa situação pode aumentar significativamente os riscos.

Mochila (provavelmente muito pesada) pronta, o destino é a pequena e agradável cidade de Passa Quatro, que está cerca de 250 km de distância de São Paulo. Na cidade é possível contratar alguém para fazer o trecho de carro (jipe ou perua, normalmente) até a Fazenda Santa Amália, onde, de fato, começa a travessia. É uma boa ideia já contratar a mesma pessoa para fazer o resgate no final da travessia, na BR 354, na Fazendo do Pierre.

Dia 1: Da Toca do Lobo até o Alto do Capim Amarelo

Começando na Fazenda Santa Amália, uma leve subida leva até a Toca do Lobo, uma pequena gruta em frente a um riacho, que está bem degradada, cheia de lixo. Este rio é o único ponto de água do dia. A trilha cruza o pequeno rio e entra no mato.

Toca do Lobo na Travessia da Serra Fina

Toca do Lobo

A trilha do primeiro dia não oferece maiores dificuldades de navegação. Geralmente, ela está bem marcada e o Alto do Capim Amarelo é bem visível. Além disso, boa parte do caminho segue sobre a crista das montanhas (uma crista bem fina, a razão do nome).

No caminho para o Capim Amarelo

No caminho para o Capim Amarelo

O caminho total do primeiro dia tem por volta de 6 km e os trechos de escalaminhada são curtos, embora a subida total seja mais de 1.000 metros. O trecho final até o cume do Capim Amarelo é o mais íngreme, com alta exigência física. Depois de todo o esforço, chega-se no Alto do Capim Amarelo, que está oficialmente a 2.392 metros (a medida do GPS foi de 2.484 m). Com tempo bom é possível enxergar todo o caminho da travessia e as montanhas vizinhas. Acampa-se em clareiras no meio do capim. O espaço é reduzido. Com número elevado de pessoas, a solução pode ser buscar áreas alternativas na base da montanha.

Serra Fina, até o capim amarelo

Serra Fina, até o capim amarelo

Acampamento no Capim Amarelo - Travessia da Serra Fina

Acampamento no Capim Amarelo

Para mim, este foi o dia mais fácil de toda a travessia. Baixa exigência técnica e quase nenhuma dificuldade de navegação. Também é o dia mais curto.

Vista do pôr do sol no Capim Amarelo

Vista do pôr do sol no Capim Amarelo

Dia 2: Saindo do Capim Amarelo e chegando à Pedra da Mina

Este é um dia intenso. Saindo do lado esquerdo da área de acampamento, a descida do Capim Amarelo é muito íngreme. Em primeiro lugar, cuidado para não descer muito perto da laje de pedra. Existem caminhos bem demarcados ali, mas não levam a lugar algum. A trilha vai contornando o Capim Amarelo e depois fica bem de frente à Pedra da Mina. O trecho de descida exige certa técnica para evitar acidentes.

Escalaminhada no segundo dia da Serra Fina

Escalaminhada no segundo dia da Serra Fina

No final da descida existe um trecho com capim bem alto e muitas bifurcações. Bastante cuidado para não ficar perdido.

O caminho segue predominantemente na crista da serra, passando por um cume menor, depois descendo até a base da Pedra da Mina. Neste ponto existe água. Uma pequena queda (parece uma mancha preta na pedra). Também existe uma região grande de charco, com alguns pontos de água potável e muitos buracos onde é possível se afundar totalmente (recordações não muito boas… o/).
Depois disso, seguindo a trilha existe um pequeno riacho que deve ser cruzado e é, em minha opinião, o melhor ponto de água deste trecho. Muito mais fácil de se pegar e com melhor aparência.
Depois disso, a subida da Pedra da Mina. Um trecho bastante íngreme (esta é a palavra mais utilizada neste relato). Muito capim (a segunda palavra mais utilizada). Alguma escalaminhada, com bastante barro.

Existem excelentes opções de acampamento no cume, mas são poucas. Se houver um volume muito grande, pode ser uma ideia acampar antes ou logo depois do cume. A Pedra da Mina é a quarta montanha mais alta do Brasil, com 2.798 metros acima do nível do mar (no GPS, 2.802). Deste ponto é possível ver as montanhas de Itatiaia, a serra da Bocaina, entre tantas outras. O visual é fantástico.
Existe um livro de cume dentro de uma caixa metálica.

Livro de cume da Pedra da Mina

Livro de cume da Pedra da Mina

Este é um dia bem difícil, com navegação complicada, subidas muito fortes e escalaminhadas mais exigentes e de maior exposição. A distância é de quase 8 km, com subida acumulada de mais ou menos 900 metros e descida acumulada de 700 metros. Também pode ser a noite mais fria (apesar de ser a mais bonita). Neste ponto é possível abandonar a travessia, utilizando a trilha do Paiolinho.

Cume da Pedra da Mina

Cume da Pedra da Mina

Dia 3: Saindo da Mina, passando pelo temível Vale do Ruah e chegando ao Pico dos Três Estados

A descida da Pedra da Mina é mais simples que a descida do Capim Amarelo. Mas no final, chega ao Vale do Ruah, um vale extenso, com um capim bem alto, muitas bifurcações e charcos profundos. É bastante usual se perder um pouco por ali e cair nos charcos também (pelo menos aqui, nada de experiência própria, nos perdemos muito, mas nenhum de nós caiu em nenhum buraco dessa vez).
Em linhas gerais, segue-se em direção ao cume que está bem visível à direita (embora não deva se subir este primeiro cume). A trilha fica basicamente ao lado esquerdo do rio, sempre próximo à margem, até um ponto onde existe uma laje de pedra com uma pequena queda de água (nesse ponto nós já estávamos do lado direito do rio, porque cruzamos antes). Este é um ótimo ponto para se abastecer de água (daqui para frente, só existe água no final da travessia).

Vale do Ruah Travessia da Serra Fina

Vale do Ruah Travessia da Serra Fina

A trilha então começa um sobe e desce, com muito bambu (que machuca bastante). O objetivo é chegar ao cume do Cupim de Boi, que tem pouco mais de 2.500 m. Depois deste último cume, a descida leva até a base do Pico dos Três Estados. Mais uma vez, subido bem íngreme, com muito capim. Muita escalaminhada acompanha o combo.

Pico dos 3 Estados

Pico dos 3 Estados

No cume existe também pouco espaço para acampamento. Cuidado com o marco do cume que pode ser um excelente pára-raios. Cuidado também com os ratos que moram ali e podem roubar sua comida e rasgar sua barraca (também não foi experiência própria, mas aconteceu com um grupo que estava por ali). Dizem que existem em todos os lugares de acampamento da travessia, mas nós só encontramos ali no Três Estados. Deve ser óbvio, mas evite deixar comida por ali. Isso só aumenta o volume de ratos (que não são bichinhos bonitinhos que devem ser alimentados) e desequilibra o ambiente natural.
O Pico dos Três Estados é a décima montanha mais elevada do Brasil, com 2.665 metros (2.658 m no GPS). Ali a vista de Itatiaia é ainda mais incrível. Também dá para ver toda a travessia, além de outras montanhas próximas e as cidades vizinhas.

Marco do Pico dos Três Estados

Marco do Pico dos Três Estados

O terceiro dia é um dos mais difíceis, com navegação muito complicada, dificuldades técnicas e físicas significativas. Um pouco mais de 6 km de caminhada, com subida acumulada de 500 metros e descida de 700 metros (divididos em intermináveis sobe e desce).

Dia 4: Descendo tudo até o final da travessia

O último dia de travessia também não é nada simples. Para começar a descida do Pico dos Três Estados passa por trechos de capim muito alto, com muitas bifurcações. Existem diversos totens nesta parte que são fundamentais para o sucesso. O Picú, em Itamonte, que tem um formato bem peculiar é um bom marco para se localizar. A trilha vai em direção a ele.

Picu

Picu

Depois da descida do cume, a trilha segue por cristas, com bambus que podem machucar bastante, passando pelo Alto dos Ivos (2.523 m). Depois de um bom trecho, entra-se em um bosque de bromélias, muito bonito. Depois a mata começa a fechar e aí a trilha é bem óbvia até a fazenda do Pierre, onde tudo termina (e onde existem pontos de água).

A navegação é mais simples que dos dias anteriores, mas mais difícil que a do primeiro dia. A dificuldade física é elevada, por conta da forte descida, são 1.400 metros acumulados (ainda com subida acumulada de 400 metros). Também é o dia de vencer a maior distância, cerca de 10 km.

Quem leu até aqui, deve ter percebido que a travessia não é nada simples. Ao contrário, é muito exigente em todos os sentidos. Porém, o visual do lugar e a sensação de conquista compensam, ou melhor, ultrapassam todo o perrengue. É uma travessia que deve estar na lista de todo mundo que realmente gosta da montanha.

Só para terminar, valeu Tinho e Adriano!

Adriano, Edgar Perlotti e Tinho

Adriano, Edgar Perlotti e Tinho

Montanhista, mergulhador e economista nas horas vagas.

    15 Comentários

    1. Muito bom! Será que seria possivel me enviarem as informações de rota do gps que vcs usaram? Pretendo fazer essa travessia ano que vem!Muito obrigado pelo relato! Abraços.

    2. Oi Pablo, obrigado! Eu usei como base os tracks do Rumos (http://www.rumos.net.br/rumos/) e Clube dos Aventureiros, além do Guia de Trilhas da Editora Kalapalo do Guilherme Cavallari (http://www.kalapalo.com.br/).

      Eu tenho a minha rota gravada, mas está com poucos way points e eu mantive meus erros de percurso. Se quiser mesmo assim, me manda um email (edperlotti@gmail.com). Abs

    3. Oi Egdar! Parabéns pela trip!

      Ficou legal d+ o relato da Travessia da Serra Fina.
      Já está na minha lista de próximas aventuras.

      Quando estiver indo para lá vou pegar algumas dicas com você.

      Abraços,
      José Henrique
      @amorminofonseca
      http://www.aventuraseexpedicoes.com

    4. Tudo bem Edgar, as dicas dos sites já são muito úteis! Abraços!

    5. Cara interessante demais sou louco por aventuras e esportes desta magnitude mais fico só sonhando moro em Três corações estou rodeado de montanhas porem não tão alta como a vizinha Mantiqueira e predendo sair logo do pensamento e partir para a ação pois para mim isto é viver de verdade.

      1. João, meu nome é José Carlos, comecei a fazer trekking há pouco tempo. Até o momento já fiz três travessias e lhe digo que é muito melhor do que pensamos. Minha sugestão: Encontre outras pessoas da sua cidade que já realizam este esporte e vá em frente.

    6. Caros Montanhistas, estamos situados a 5 km da saída(fazenda do Pierre)da Travessia da Serra Fina, na BR 354. Além de hospedarmos com café da manhã, levamos até a Fazenda Santa Amália e fazemos o resgate na BR. Conheçam o site e entre em contato!

      1. Boa Tarde Lara!
        Qual o site de vcs para saber sobre a hospedagem e valores??

        Fico no aguardo!

        1. Olá, Renata… Boa Tarde!
          O site da Estalagem é:www.estalagempintassilgos.tur.br
          No site você poderá ver fotos do local, das casas e tirar algumas dúvidas!
          Estaremos à disposição para demais informações através da página contato, no próprio site.
          Obrigada!

    7. Li e gostei, informações muito importante,rica em detalhes, esse é o espirito de montanhista, e com certeza minha equipe fara uso dessas informações neste feriado de pascoa, de Floripa para travessia. Mario Firmino (montanhista descalço).

    8. bem legal seu relato, especialmente para aqueles que querem fazê-la.
      Aproveitando, sempre fiz travessias de um único dia… Por isso não tenho base da alimentação. Necessária/ideal. O que você levou de comida e em que quantidade… Alguns falam de comida liofilizada… Mas realmente não tenho nem idéia…. Poderia me ajudar?

      1. Irmão, o negócio é comida não perecível.
        Só evite os enlatados, pois o metal que envolve a comida se torna um peso extra desnecessário. Eu pessoalmente levo bastante comida, pois é exatamente isso que vai me dar a energia para conseguir um bom desempenho nas trilhas. Sempre lembrando que vai ter que carregar tudo nas costas,
        O liofilizado é uma boa opção por ser mais leve, masss são MTO CAROS. Eu por exemplo NUNCA compro rs. E também eu não indicaria para trilhas sem acesso a água.
        Numa travessia vc não precisa comer mal não! nada de só levar miojo! Dá para levar alguns vegetais que duram mais, frutas, queijos, farinhas ( tapioca), goiabada, castanhas, calabresa, etc… O negócio é pensar alimentos que não vão estragar durante o tempo da trilha e que também não venham a amassar. Por exemplo, uma banana numa mochila pode ser um problema, mas uma maça ou uma cenoura não.
        Lembre-se sempre que é uma OBRIGAÇÃO levar todos o lixo gerado pelas embalagens e afins. Forte abraço!

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